domingo, 23 de fevereiro de 2014

Neve, Orhan Pamuk!

“(…) o mal do mundo – isto é,  a pobreza e a ignorância dos pobres e a esperteza e dissipação dos ricos – e toda a vulgaridade do mundo, toda a violência, toda a brutalidade – isto é, todas as coisas que nos enchem de culpa – decorrem do fato de todo mundo pensar igual.”



neve

Caso eu fosse uma pessoa influenciável teria desistido de ler Neve, não teria nem começado, porque entre as muitas opiniões que andei lendo por aí a grande maioria taxava o livro de lento e enfadonho. Porém, como eu prefiro tirar minhas próprias conclusões a respeito dos livros que me interessam, não dei muita importância e comecei a leitura mesmo assim. E tive uma grande surpresa, pois percebi que Neve não só deixa de ser lento e enfadonho como é um livro informativo, instigante e agradável.
Eu gostei muito da história criada por Orhan Pamuk, gostei da temática da obra, da forma como o autor conduz a narrativa e dos muitos dados sobre a Turquia que fornece. O livro tem quase 500 páginas repletas de informações políticas, geográficas e, principalmente, relacionadas à religião. Além disso, é também bastante poético.
A trama, ambientada na Turquia, conta a história de Ka, um poeta e jornalista que regressa a Kars, seu povoado de origem, após muitos anos de exílio político na Alemanha. No entanto, a cidade que Ka encontra não é mais a mesma de outrora, o vilarejo está diferente, as pessoas mudaram, agora Kars é um lugar repleto de conflitos. Como se não bastasse, há também uma onda de suicídios de garotas adolescentes. O suicídio das meninas é um dos motivos pelos quais Ka decide voltar à cidade, pois precisa escrever um artigo sobre a morte delas… O que mais chama a atenção do protagonista é como essas meninas se matam: “Uma maneira abrupta, sem nenhum aviso prévio, no meio de seus afazeres diários.”
A parte mais interessante da história é quando Pamuk – para explicar as razões que levam as adolescentes a atentar contra a própria vida, adentra o tema da religião, mostrando os conflitos existentes no país: o dilema da Turquia contemporânea; a rinha entre fanáticos religiosos e ateus; a hostilidade existente entre os seguidores do islã e os defensores do Estado.
“O Estado, que proibiu que mulheres entrassem nas salas de aula com a cabeça coberta, afirma que o manto é um símbolo do islã político, que impede que as mulheres gozem dos mesmos direitos dos homens. O islã, que defende o manto, assegura que seu uso é uma forma de protegê-las e valorizá-las.”
O pano de fundo é justamente essa discussão acalorada acerca da necessidade de usar ou não usar o manto, de cobrir ou não cobrir a cabeça. É um tema bem explorado durante toda a narrativa, um assunto bastante controverso, “pois muitas mulheres são a favor de abandonar o manto, porque o consideram uma forma de repreensão religiosa. Outras, no entanto, o defendem, pois acreditam que seu uso é uma forma de proteção contra assédio, estupro e a degradação da mulher. Inclusive há aquelas que acreditam que o manto traz respeito, dignidade e um lugar mais satisfatório na sociedade.”
Ka, apesar de possuir um certo interesse pela religião, não tem muito claro se é ateu ou se tem fé em algo. Algumas vezes sente-se culpado por ter se recusado durante praticamente toda a vida a acreditar no mesmo Deus daquelas pessoas que ele considera não instruídas. Ele mostra-se visivelmente confuso, por isso sua visita a Kars vai servir também como uma forma de aproximação com Deus, um reencontro consigo mesmo, uma nova oportunidade de reavaliar sua fé, de decidir de que lado está realmente.

“Não conseguia ver como poderia conciliar essa minha nova identidade europeia com um Deus que exigia que as mulheres se cobrissem com mantos, então tratei de excluir a religião de minha vida. (…) Eu quero um Deus que não me peça para tirar os sapatos em sua presença e que não me obrigue a me pôr de joelhos para beijar as mãos das pessoas. Eu quero um Deus que entenda a minha necessidade de solidão.”

Mas, e as meninas suicidas, por que elas se matam? O suicídio delas tem algo a ver com a proibição de usar o manto? O que elas pretendem com isso, defender o islã ou apenas protestar contra o Estado?
São muitas as perguntas colocadas por Pamuk e, no meio de todo esse turbilhão de contestações, informações e conflitos, o livro ainda se encarrega de relatar uma história de amor: a história de Ka e Ipek.
Ipek foi uma antiga companheira de escola de Ka, revê-la foi outra das razões que fez ele regressar a Kars. A história do casal é bonita, sensual e cheia de encontros e desencontros.
A narrativa é bastante bonita, quando o narrador fala sobre a neve, sobre a claridade da neve e sobre os poemas que Ka escreve inspirado pela neve é bastante comovente, profundo e poético. A brancura da neve é sugestiva, inspiradora e se encarrega de trazer à tona o lado mais lírico do poeta e protagonista Ka.
Neve é um suspense político bem narrado e com informações muito bem amarradas. Recomendo!

Sobre o autor:
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Orhan Pamuk nasceu em 1952, em Istambul. Hoje é o principal romancista turco, traduzido em mais de 40 idiomas. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2006.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Eu finalmente li 'Os Miseráveis' - de Victor Hugo!

“Enquanto existir, fundamentada nas leis e nos costumes, uma condenação social que crie artificialmente, em plena civilização, verdadeiros infernos, ampliando com uma fatalidade humana o destino, que é divino; enquanto os três problemas deste século, a degradação do homem no proletariado, o enfraquecimento da mulher pela fome e a atrofia da criança pela escuridão da noite, não forem resolvidos; enquanto, em certas regiões, a asfixia social for possível; em outros termos, e sob um ponto de vista ainda mais abrangente, enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria, os livros da natureza deste poderão não ser inúteis.”                

miseraveis again
Ler ‘Os Miseráveis’ foi minha meta literária de 2013. Comecei a leitura no início de julho daquele ano, mas só consegui concluí-la mais de dois meses depois. A obra, publicada em 1862, é sensacional, mesmo assim não foi uma leitura que eu fiz de uma sentada, não por ter uma linguagem difícil ou por ser enfadonha, mas porque foi necessário tempo e dedicação já que se tratam de três volumes que somam quase 1500 páginas (eu li a edição publicada em 1981 pela já inexistente Círculo do Livro).
Os Miseráveis narra a história da personagem Jean Valjean e sua luta para redimir-se. O protagonista, um ex-prisioneiro das Galés, após ficar mais de vinte anos na prisão apenas por roubar um pedaço de pão para alimentar a família -, está endurecido e amargurado pelas circunstâncias da vida, de modo que quando ele finalmente consegue a liberdade é um outro homem, completamente distinto daquele que entrou: bruto, revoltado e desonesto. Mas eis que Jean Valjean conhece o bispo Myriel, uma personagem bondosa, pura e generosa. É justamente esse bispo que vai fazer com que Jean Valjean decida transformar-se em um homem melhor e, sobretudo, em um homem disposto a ajudar aqueles que necessitam. Contudo, seu passado estará sempre batendo à sua porta, Jean Valjean será perseguido durante praticamente toda a vida. Seu perseguidor responde pelo nome de Inspetor Javert, o antagonista da história. Javert não é totalmente mau, mas é severo e tem obsessão por Valjean, pois ele acredita que alguém que cometeu delitos no passado não tem o direito de refazer a vida e não pode transformar-se em uma pessoa boa, por isso dedica-se a fazer a vida do protagonista impossível.
Além da história de Jean Valjean, conhecemos também a história de Fantine, uma jovem de origem humilde que, grávida, se vê abandonada pelo namorado. Conhecemos também Cosette, a filha de Fantine, que ainda menina é deixada a cargo da família Thérnadier, porque sua mãe não tem condições financeiras  para criá-la. Fantine precisa trabalhar em tempo integral para poder enviar dinheiro para que Cosette seja sustentada na casa dos Thérnadier.
A história se desenrola em torno de Jean Valjean e Cosette que em um dado momento têm suas vidas entrelaçadas. Além dessas personagens principais, conhecemos também Marius, o namoradinho de Cosette; o pequeno Gavroche, uma personagem surpreendente, e os Thérnadier, um casal desonesto e odioso.
O enredo é interessantíssimo, no entanto teria lido mais rápido se Victor Hugo tivesse contado apenas a história das personagens principais: sobre o incrível Jean Valjean, sobre a vida tão curta e miserável de Fantine, sobre o persistente Javert e sobre o lindo e inocente amor de Cosette e Marius. Mas o autor além de narrar a vida miserável de suas personagens, junta à história fictícia acontecimentos políticos de um período decisivo da história da França. Ele traça um retrato da sociedade parisiense da época (Século XIX) e faz uma descrição minuciosa da cidade: a pobreza existente, os personagens maltratados, condenados e injustiçados e, à medida que os anos vão passando, vai modificando essa mesma cidade aos olhos do leitor, muitas vezes fazendo digressões para comparar a cidade atual, decrépita e miserável, àquela de outrora, feliz e opulenta.

“Estudemos as coisas que já não existem. É necessário conhecê-las, ainda que seja apenas para evitá-las. As contrafações do passado tomam nomes falsos e gostam de chamar-se o futuro. Esta alma do outro mundo, o passado, costuma falsificar o seu passaporte. Precavenhamo-nos contra o laço, desconfiemos dele. O passado tem um rosto, que é a superstição, e uma máscara, que é a hipocrisia. Denunciemos-lhe o rosto e arranquemos-lhe a máscara.”

O livro está recheado de personagens fortes, muito bem caracterizados, humanos, reais. O autor faz questão de colocar em evidência a luta do oprimido contra o opressor, sua vontade de revolucionar, de lutar por ideais, de lutar por bem-estar e por uma vida sem privações. Victor Hugo leva o leitor a fazer uma reflexão sobre os problemas daquela época e também sobre questões transcendentais do bem e do mal. Os Miseráveis é, a meu ver, um livro atemporal, porque se pararmos para pensar chegaremos à conclusão de que a pobreza, o maltrato e as injustiças continuam assombrando nossas vidas até hoje.
A história de Jean Valjean, Fantine, Javert, Marius e Cossete é sem dúvida o que mais prende o leitor... é interessante, é importante, mas não mais que os acontecimentos históricos que ocorrem ou ocorreram no país, isso nos fica bem claro durante toda a leitura. Algumas vezes precisamos ler muitas páginas seguidas apenas sobre esses acontecimentos, como por exemplo, sobre Napoleão Bonaparte e a Batalha de Waterloo e sobre a Revolução Estudantil e suas barricadas… Ah, então por isso foi chato e você demorou tanto para concluir a leitura? Não, demorei porque quis fazer pausas, desanuviar a mente, intercalar com outras leituras e também porque quis procurar mais informações acerca daquilo que o autor estava falando para melhor compreender o contexto histórico no qual a obra está inserida.
O fato de Victor Hugo misturar a história das suas personagens fictícias com personagens e acontecimentos reais faz com que seu livro seja mais interessante ainda. O autor não apenas entretém o leitor, mas o instrui também. As informações históricas que ele nos dá durante toda a narrativa são importantes e relevantes. Victor Hugo praticamente estimula aquele leitor mais curioso a correr atrás de mais e mais informações. Além disso, o escritor faz questão de mencionar várias vezes durante a narrativa que o conhecimento é mesmo a salvação da lavoura, que não somos nada se não nos informamos, se não procuramos aprender e se não buscamos alimento para nosso intelecto.

O crescimento intelectual e moral  não é menos indispensável que a melhora material. Saber é um viático; pensar é de primeira necessidade; a verdade é tão alimentar como o fermento. Uma razão jejuna de ciência e sabedoria fenece. Lastimemos, como se fosse, estômagos, os espíritos que não comem.
Se existe alguma coisa mais pungente que um corpo agonizante pela falta de pão, é uma alma que morre de fome de luz.


Sobre o autor:

Victor Hugo foi um político, poeta, dramaturgo e romancista francês. Nasceu em 1802 e morreu em 1885. Entre suas obras mais conhecidas podemos citar: Os Miseráveis, O Corcunda de Notre Dame e Os Trabalhadores do Mar.
Deixo aqui duas adaptações para o cinema. Ambas as adaptações foram inspiradas na peça que, por sua vez, foi inspirada no livro de Victor Hugo:

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Eu sublinho passagens de livros # 2

Jesusalém - pag 57


"Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro."
(Jesusalém - Mia Couto)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Mudança - de Mo Yan!






“Um grande vilão tem sempre algo de heróico, e um grande herói tem sempre algo de vil.”

mudançaHá tempos eu tinha vontade de ler algo de Mo Yan, o escritor chinês ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2012. Como para mim ele era um mero desconhecido, acabei por escolher um livro ao acaso.
Decidi-me por Mudança, que não foi o primeiro livro que ele escreveu mas que veio bem a calhar com o que eu estava buscando: conhecer mais a fundo o escritor assim como o país no qual ele vive. 🙂
Mudança é um livro bem fininho, entretanto, suas poucas páginas se encarregam de contar um pouco sobre a trajetória de Mo Yan e de como ele enveredou pelo caminho da literatura.
O autor se dispõe a relatar de forma relaxada e bem-humorada, baseada em memórias de sua vida privada, as grandes transformações ocorridas na China ao longo das últimas três décadas.
Mo Yan vivia em um vilarejo, estudava em uma boa escola, uma das melhores da província de Shandong – e da qual foi expulso quando era apenas um estudante da quinta série. Trabalhou em uma fábrica de algodão e tempos depois entrou para o exército porque achava que apesar de difícil era muito mais fácil que ser admitido em uma universidade. Ele conta como foi colocar os pés na capital Pequim, mesmo naquela época a cidade não sendo nem um décimo do que é hoje, ainda assim já lhe parecia monstruosa e assustadora. Relata sua visita ao mausoléu do Presidente Mao e da emoção que sentiu na ocasião de seu falecimento, pois ele e grande parte dos chineses acreditavam que com sua morte seria o fim da China. Porém, alguns anos após esse acontecimento, era possível constatar que a China não apenas havia sobrevivido, mas melhorava e crescia dia após dia. Além disso, após o desaparecimento do Presidente Mao, proprietários de terra deixaram de ser estigmatizados, agricultores passaram a ter mais grãos em casa e até as universidades mudaram seu sistema educacional, passando a adotar o exame de admissão, facilitando assim a vida daqueles que desejavam estudar. Tudo o que o autor conta ilustra muito bem como as coisas mudaram na China e continuam mudando.
Eu, particularmente, acredito que este livro não mostra claramente como é de fato a literatura de Mo Yan, seria preciso ter contato com sua escrita ficcional também, mas reconheço que foi uma boa introdução, foi a porta de entrada para conhecer o caminho que ele trilhou até ser considerado e reconhecido como um escritor de sucesso. Ademais, pude perceber um pouquinho mais as peculiaridades da China – este país gigantesco, enigmático e tão cheio de nuances.
Sobre o autor:

Mo-Yan
Mo Yan nasceu na província de Shandong, China, em 1956. É autor de romances, novelas e contos. Ganhou vários prêmios literários nacionais e é o escritor chinês mais elogiado de sua geração. Mo Yan é seu pseudônimo, que significa “não fale”, um nome bastante curioso para alguém que se dedica a escrever e criar vozes para debater acerca de diversos assuntos.